sexta-feira, janeiro 26, 2007

sábado, setembro 30, 2006

ACORDEI COM O FRIO DA NOITE ATRAVESSANDO UMA FRESTA DA JANELA ENTREABERTA, lembrando-me de que me encontrava só dentro de um albergue escuro. Fazia muito frio, e a paisagem do lado de fora se mostrava invadida pelo branco. Havia nevado um pouco durante a noite, e do lado de fora era possível escutar o riso das pessoas se divertindo com a neve.
Quando nevava, eu costumava observar do meu quarto os flocos de neve caírem e se acumular entre as beiradas da janela. Debruçava para ver as pessoas caminhando pelas ruas embranquecidas, protegendo-se do frio com agasalhos de lã, as crianças se divertindo atirando bolotas de neve umas sobre as outras, ou então cavando buracos no gelo. Alicja sempre me visitava antes de ir até o mercado para comprar bolo e frutas, e sempre me convidava para acompanhá-la.
— Você precisa ver, Viktor! Estão todos brincando de atirar neve nos outros. — dizia-me, forçando-me a ir junto.
Levantei da cama e caminhei tropegamente até o banheiro. Enquanto lavava o rosto, detive-me alguns minutos para admirar a imagem refletida no espelho. Não gostava nada do que via; parecia ser outra pessoa me fitando do outro lado do vidro, um rosto esquecido que não parava de envelhecer, os cabelos grisalhos já rareando nas têmporas, e a pele esfacelada de rugas me conferindo uma nova fisionomia. Minhas olheiras ficando cada vez mais lívidas em função das noites mal dormidas, a barba desalinhada. Não tinha ânimo para apará-la, e deixá-la crescer era uma mania idiota que adquiri para me tornar irreconhecível e me esconder de mim mesmo.
Após um banho, vesti-me e me preparei para sair. Vesti um casaco preto, e detive-me algum tempo para ver a noite através da janela. Podia quase sentir os nove graus negativos daquela noite invernosa pela vidraça. O vento cortante rompia pelas quadras, e toda a paisagem estava camuflada pela brancura dos flocos de neve: em cima dos carros, acumulado no canto das calçadas, sobre os galhos nus das árvores desfolhadas. Era tudo exatamente igual como antes, do jeito como eu lembrava.
— Você não vai descer comigo?
Uma voz infantil surgiu atrás de mim. Era uma voz contida, e eu já esperava tornar a escutá-la novamente. Virei-me, e me deparei com Alicja sentada sobre a borda da cama, um fantasma do passado, que me olhava de um modo estranho, um olhar melancólico e ao mesmo tempo perdido.
— O que você quer agora? — perguntei-lhe, com pouca paciência.
— Que você me leve junto com você — disse ela, desajeitadamente. — Para um passeio.
— Não, isso não — respondi-lhe secamente. — Você sabe muito bem que não posso. Não se esqueça de que estou aqui para tratar de outros assuntos, e você não tem como ir comigo.
— Você passa muito tempo entretido com suas coisas — resmungou, esboçando uma careta infantil. Por Deus, como estava linda! Sentia-me frágil e quase inclinado a abraçá-la; não, mas não era Alicja quem estava sentada sobre a cama, mas sim outro lapso de memória, de algum fato que aconteceu em determinado momento do passado.
Procurei pelo chapéu de couro que estava perdido em algum lugar, e deixei o quarto. Desci pelas escadas tateando as paredes, meus passos calculados como se fossem os de um velho enfermo. Na minha idade não se pode arriscar mais do que a mente deseja, e não era mais capaz de confiar nas forças das pernas. Alcancei o saguão com alguma dificuldade, agradecendo em silêncio por não ter levando um tempo maior que o esperado. Não era mais Júlia quem estava cuidando do balcão, mas sim um homenzinho muito mais jovem, talvez um estudante, que sorriu ao me ver. Deveria permanecer a noite toda ali, então saí para a rua sem me preocupar em voltar cedo.
Lá fora, a noite e o frio me saudavam como se sabiamente estivessem à minha espera. A luz das iluminarias refletia sobre o asfalto úmido, e algumas crianças entretinham-se ainda naquela hora tardia brincando sobre a neve formada nas bordas das calçadas. Do alto de uma janela, uma mãe espreitava para fora recolhendo roupas de um varal improvisado. Era curioso observar todos estes detalhes como se tudo ao redor não passasse de um curioso filme de ficção, sendo eu apenas um único espectador, atendo-me às emoções que regia a vida daqueles personagens; como tudo parecia ser engraçado e ao mesmo tempo tão triste! Eleora me disse uma vez que a vida funciona como uma história de teatro; Tudo o que se necessita para compor uma peça esta lá, os personagens, as histórias, o cenário. Basta olha-los com um pouco mais de atenção.
Sentia-me distante, isolado, parecendo viver num mundo criado em minha própria imaginação. Como se fosse um vulto, impelido de caminhar: apenas procurava-me manter em pé, arrastar o corpo a passos tímidos e cautelosos, porém firme. Deixar-me levar pelos momentos sem me perturbar com os fatos que ocorriam à volta, entretendo-me em observar os demais, tão ocupados em viver suas vidas simples como formigas desesperadas trabalhando num grandioso ninho, sem ao mesmo imaginar a imensidão do mundo que os rodeava. “Pobres tolos” — pensava. “Mas para eles é melhor assim. Pelo menos, são felizes. No meu caso, eu nunca conquistarei esta felicidade e por isso sempre os invejarei”.
Não pretendia ir longe; minha intenção era dar apenas um passeio pelas redondezas, caminhar um pouco. Estava descansado, havia dormido a tarde inteira e se não fizesse algum exercício custaria a pegar no sono novamente. O dia seguinte prometia ser longo: começaria minha busca por Alicja, e aproveitaria para visitar alguns lugares. Eu ainda estava um pouco ansioso. Quando ficava assim, costumava caminhar de um lado para outro da sala, na casa dos meus pais, olhando para o enorme relógio carrilhão que ficava entoado em um canto da sala. Estes antigos relógios de pedestal em forma de torre e mostrador com algarismos romanos, que funcionava através de um complexo mecanismo de cordas e correntes que balançavam levemente um pêndulo do tipo lira. Toda vez que o pêndulo ia de um lado para outro, fazia um barulho inquietante, e o único som presente no apartamento parecia ser o ruído do pendulo, que balançava de um lado para outro. De um lado para outro. Este pêndulo ficou assim na minha cabeça durante anos a fio; eu quase podia escutá-lo, se o desejasse.

segunda-feira, setembro 25, 2006

INIMIGOS

ERA UMA MANHÃ FRIA E NEBULOSA e os soldados estavam em prontidão, reunidos por trás das trincheiras em formações múltiplas, aguardando ansiosos o momento do confronto. Do alto de uma colina, surge o outro grupo, um exercito de homens se aproximando vagarosamente, tão numerosos quanto seus olhos podem contar. Eles interrompem a marcha silenciosa, baixam os escudos e assim permanecem até segunda ordem. O oficial superior surge por trás da fileira, montando a cavalo, e tudo o que se pode ouvir é o ruído do vento de inverno sibilando entre as folhas das árvores e o trotar do cavalo se aproximando. Ele carrega consigo uma bandeira hasteada, o símbolo que representa a nação à qual ele serve. Ele segura seu cavalo até a meia distancia que separa os dois exércitos, o animal relincha. O oficial que comanda a tropa polaca faz o mesmo: deixa o seu lugar em meio aos homens, montado no cavalo preto, e se dirige até o ponto em que os dois líderes se encontram. Os soldados aguardam ansiosos: muito deles são jovens, alguns até demais. Outros têm idade o suficiente para conhecer o remanejo das armas e táticas de combate corporal, mas ainda são poucos os que conseguem dominar o medo. Muitos estão ansiosos, e o modo como eles se olham entre si denuncia este sentimento.”
“Os líderes se encontram. Durante algum tempo eles se reverenciam, depois conversam respeitosamente. O inimigo segue à risca a cartilha que rege o ritual dos bons modos: formaliza, talvez de forma um pouco teatral, a ordem que carrega sobre o pergaminho que segura. O oficial das tropas polacas responde à declaração de guerra, diz que está ali para representar os interesses da rainha e finaliza alegando que seus homens estão prontos para lutar em nome da pátria. As ordens que recebeu são bem claras: precisa defender aquelas terras à todo custo, não importando a quantidade de sangue derramado. Depois os dois se reverenciam novamente, a declaração de guerra está formalizada e que vença o melhor. Afastam-se, e cada um segue de encontro ao exército que vai liderar.”
“O ritual indica que o sinal deve partir da resistência. Depois que o oficial retorna da colina, assume a posição de confronto junto com os polacos. Os soldados levantam os escudos até a altura dos ombros, protegendo o rosto, mas com espaço suficiente para que possam fitar os inimigos à distancia. Com um aceno de cabeça, o oficial ordena que seja atirada a primeira flecha. Agora o arqueiro sabe o que fazer. Ele acomoda a flecha no arco, pousa a ponta sobre o fogo aceso no chão, deixa incendiar o chumaço de algodão que está preso na ponta. Depois ele aponta para o céu e dispara o arco. Durante alguns segundos, todos observam a flecha percorrer uma curta distancia até cair no exato ponto aonde se reuniam os dois oficiais. Assim que toca o solo, os homens começam a gritar. E correm na direção do exército rival, preparados para o confronto.”
“Quando se colidem, a planície fica infestada e só então se percebe o quanto numerosos eram. Os que estão na frente são os primeiros a morrer. Os melhores estão atrás. O duelo é sangrento. Facas, foices, espadas e machados se colidem um ao outro, homens são mutilados vivos e depois de algum tempo já existem baixas consideráveis dos dois lados.”
“A batalha prossegue até o anoitecer, e do anoitecer até o amanhecer. Quando o sol surge no horizonte, e os raios tímidos da manhã tocam o campo, a planície revela-se um amontoado de corpos destroçados. Os que sobreviveram observam os cadáveres em busca de sobreviventes. Quando deparam com um companheiro vivo, eles o removem debaixo da pilha de cadáveres e o levam para ser medicado. Quando é o inimigo que encontram, eles o apunhalam com a espada.”

domingo, setembro 24, 2006

Capítulo Um


OS GAROTOS DA MINHA IDADE TINHAM O COSTUME DE PASSAR A TEMPORADA DE FÉRIAS no interior, em suas confortáveis casas de campo, ou então nas montanhas, onde era mais aventuroso. Qualquer lugar certamente seria melhor do que permanecer na capital, e Varsóvia, apesar do ritmo agitado que uma capital deveria ter, não oferecia muitas opções de entretenimento. Por essa razão todos iam para o Leste, porque nas temporadas ofereciam-se várias atividades nos acampamentos juvenis das aldeias que ficavam no alto das montanhas, e ali quase sempre podia se encontrar todo mundo.
Meus pais não tinham o hábito de viajar, e eu costumava passar a temporada de férias na cidade. Comecei a freqüentar Lazienki para me distrair, mas logo aquele lugar se tornou uma espécie de refúgio particular. Sentava-me à sombra de uma árvore, espiando a agitação de um pequeno comércio de barracas simples. Observava o tumulto das pessoas cruzando a praça, os homens de negócios caminhando apressadamente e carregando suas valises tão próximas como se suas preciosas vidas estivessem guardadas ali dentro; Os comerciantes gritando para todos ao redor, atraindo a multidão em volta das tendas, exibindo uma infinidade de objetos e artefatos religiosos. Ainda posso sentir a brisa arejando meu rosto, o aroma desprendido das frutas vendidas na feira. De admirar a luz do sol penetrando no meio das folhagens, de maneira a se tornarem apenas feixes de luz que tocavam o solo.
Quando pequeno, eu e meu irmão Gustav estudamos numa Cheder próxima de casa. Ali aprendi a conhecer as histórias da Torá e aprender a falar o aramaico e o iídiche. Minha mãe sempre quis que eu e meu irmão mais velho estudássemos em escolas rabínicas. Era do desejo dela que um de nós desenvolvesse o interesse de seguir a carreira de seminaristas, embora meu pai não quisesse que nos tornássemos um daqueles judeus hassídicos que dedicavam maior parte do tempo estudando os capítulos da Mishná ou decifrando códigos do Gemara. De qualquer modo, foi uma experiência muito boa. Conheci um rabino, chamado Shmuel, que me contava histórias da Torá de uma maneira teatral. Talvez aí tenha me despertado a vontade de escrever.
Meu pai ministrava aulas de Literatura na Universidade Pública, e desde pequeno nos acostumou com a literatura clássica. Adorava ler Moby Dick, de Melville. Éramos agraciados com livros de Dostoievski, Sófocles, Tolstoi e Shakespeare. Talvez quisesse nos afastar um pouco dos ensinamentos hassídicos para nos aproximar da literatura clássica. Isso foi confirmado pouco depois, quando deixamos de freqüentar a Cheder e meu pai nos matriculou numa escola, o Liceu, uma instituição de ensino católico.
Particularmente, eu tinha um fascínio incomum pelas antigas histórias medievais, principalmente dos temas que tratavam da colonização da Polônia e da luta da civilização pela reconquista dos territórios. Eram histórias que falavam de cavaleiros, reis e guerras européias. Comecei a ler livros que contavam as batalhas travadas entre poloneses e mongóis no final do século IX, e sonhava em viver as aventuras dos homens desta época. Meus primeiros personagens nasceram dentro desse cenário: Ivan, um cavalheiro que tinha a missão de reconquistar os antigos territórios do reino Polonês, que se apaixonara pela única herdeira real do trono polonês, a princesa Isabella. Isabella era uma mulher de personalidade forte, que resistiu bravamente contra as conspirações políticas internas e ocupação das terras pelos inimigos. Mais tarde, como Ivan descobriria por si próprio, ela era apenas uma mulher só, dividida entre a responsabilidade política e a paixão secreta que nutria por ele.
Era divertido imaginar situações amorosas entre Ivan e Isabella. Gostava de imaginar estas histórias enquanto cruzava o parque, inspirado pela paz e harmonia que provinha daquele lugar, e depois ansiava em retornar para casa o mais rápido possível, trancar-me no quarto e anotar meus devaneios num pequeno diário.
O refúgio para tais histórias foi uma alternativa que encontrei para me ver distante da realidade sem graça do cotidiano. Uma forma de me escapar da estupidez e prepotência dos professores do Liceu, a escola católica ao qual era obrigado a estudar. Estes homens extremamente autoritários acreditavam dirigir uma instituição voltada para filhos de famílias abastadas (com algumas exceções), tornando um ambiente austero, regido por severas normas que acreditavam ser o ideal para tal categoria de alunos. Na verdade, este sistema só servia para fomentar a falsidade, a hipocrisia e o culto das aparências. Como se isso não bastasse, tinha que suportar também o preconceito dissimulado contra judeus. Estes se faziam observar em algumas insinuações por partes dos professores, mas principalmente através das brincadeiras de outros estudantes.
A rivalidade entre judeus e católicos é algo que sempre existiu muito tempo atrás, desde a adesão dos judeus ao monoteísmo trazido por Abrão ao mundo pagão. Desde a diáspora, quando foram expulsos da Palestina pelos romanos e migrados em vários grupos, espalhados em diversas partes da Europa. Durante anos foram acusados responsáveis por epidemias que grassavam a Europa no século XVI, assim como a Peste Negra, e sofreram atrozes perseguições durante as Cruzadas cristãs e a Santa Inquisição da Igreja católica. Na Rússia, organizavam-se motins de caráter anti-semita apoiados pelo regime czarista contra grupos de judeus .
A maior parte da comunidade judaica residia na Polônia, o mais católico dos países da Europa. Ela se fazia presente em alguns bairros específicos. Em Mariensztat, onde morávamos, estavam reunidas as famílias modernas e influentes. Muitos haviam prosperado ali quando ingressaram na Polônia décadas antes. Eram homens respeitáveis que usavam roupas modernas e aparavam a barba diariamente. Tinham o hábito de freqüentar teatros, cafés e óperas e falavam bem o idioma polonês. Muitos jovens tinham a oportunidade de estudar no exterior.
Os judeus ortodoxos viviam nas periferias e trabalhavam em lojas nas ruas Grzybowska, Chlodna e Krochmalna. Vestiam-se de preto, roupas sem ornamentos algum, e portavam chapéus largos. Deixavam a barba crescer, assim como os cachos de cabelos laterais, e viviam pregando o Talmude e comendo comida kosher.
Havia preconceito contra judeus, e eu já me habituara a escutar dos meus próprios colegas piadas anti-semitas. Gustav, meu irmão mais velho, já sofrera antes as conseqüências destas brincadeiras, embora algum tempo depois se via livre delas em virtude dos seus bons modismos. Gustav era diferente de mim que, por meu comportamento recluso, me fazia um alvo fácil para piadas e brincadeiras por parte de outros alunos.
No começo, quando ninguém parecia se importar com opiniões a respeito de santos, pecadores, deuses, ou qualquer outro tipo de crença religiosa, eu podia ser considerado como mais um entre os demais alunos que estudavam no Liceu. Com o passar do tempo, meus colegas começaram a questionar hábitos culturais entre judeus e católicos, pelo intermédio de questões levantadas pelos próprios professores, e logo passei a ser visto como se não pertencesse àquele mundo. Varias vezes considerei deixar o Liceu, até mesmo em abandonar os estudos. Mas antes que decidisse fazê-lo, vinham-me à tona os ensinamentos do meu pai. Ele me dizia que escolas serviam apenas para estudar, e das lições deveríamos tirar o máximo proveito possível para que no futuro pudéssemos administrar os bens da família com seriedade e sabedoria.
Nas horas do intervalo, como habitual, eu me retirava da sala de aula, procurando logo no pátio um canto aonde pudesse descansar em paz. Retirava da sacola o lanche preparado pela minha mãe — quase sempre um sanduíche de atum — e o devorava, observando de longe outros garotos se divertirem jogando uma bola improvisada de meias pelo pátio. Formavam um pequeno time de futebol e não me convidavam para jogar — já me habituara a este gesto. Todos eles, à minha exceção, pareciam fazer amizades facilmente. Riam, discutiam e até mesmo ofendiam-se, atraindo os olhares inquietantes de um grupo de meninas, que fingiam observar o jogo, quando na verdade o interesse delas estava voltado aos rapazes mais velhos.
Desta forma, a ficção parecia ser mais agradável, e era neste mundo onde ia buscar refúgio e consolo. Às vezes era Ivan quem aparecia para me fazer companhia nos intervalos, e parecia ser o único a compreender meus problemas.
— Não se deixe enganar, Viktor. São apenas tolos — dizia ele, surgindo repentinamente ao meu lado — Nesta vida, todos encontram sua oportunidade. Hoje é a vez deles, amanhã será a sua.
— Mas, Ivan, e se talvez algumas pessoas simplesmente não tenham oportunidades? — questionei — Que talvez eu seja uma dessas pessoas, e que talvez as coisas sempre serão do jeito como foram, e que nunca terei a oportunidade de compartilhar o jogo com eles?
Saepe natatores summerguntur meliores — “Muitas vezes os melhores nadadores se afogam”. Não se esqueça disso, garoto.
E assim, da maneira como surgiu, Ivan instantaneamente desaparecia, deixando-me a sós. Tinha assuntos mais urgentes a tratar: Isabella havia tomado providencias para que fosse promovido a general, e poderiam se encontrariam diariamente nas reuniões do conselho. Estava ansioso para retornar à casa e escrever aquela parte da história... Depois de quase prontos os capítulos, eu os mostrava para Alicja Zuraw, que depois me contava sua opinião.
Eu conheci Alicja em 1931, quando tinha 12 anos e ela, 11. Ela havia se mudado para o nosso prédio pouco depois dos pais venderem a propriedade em Lublin, a sua terra natal. Lembro-me de que, pouco antes de nos conhecermos, Alicja vivia sentada nas escadas olhando melancolicamente o vazio das ruas e, conforme me confidenciou mais tarde, era porque sentia saudades da casa e dos amigos e não conhecia ninguém em Varsóvia.
Meus pais convidaram os Zuraw, certa vez, para uma visita em casa, e Alicja veio junto com eles. Ela passou a maior parte do tempo sentada ao lado dos pais, que discutiam assuntos levianos como política e as dificuldades econômicas pelas quais passavam os judeus em Lublin. Mas Alicja não dizia palavra alguma. Minha mãe representava o seu melhor papel como anfitriã e então, percebendo que nos mantínhamos alheios às conversas, pediu que exibisse para Alicja as histórias que escrevia.
— Não creio que Alicja vá se interessar por elas — observei, mas os olhares insinuantes da minha mãe denunciavam sua intenção em forçar uma amizade séria entre nós. Ela não deixava de elogiar meus desempenhos escolares e meu gosto pelas artes.
À contra gosto, levei Alicja para o quarto e o mostrei para ela. Alicja ficou encantada com a coleção de livros guardados sobre uma estante grande no canto da parede.
— Meu pai sempre nos presenteia com livros. Têm vários deles aqui. Se você quiser, não me incomodo em emprestar alguns.
— Você tem Lewis Carol? — perguntou.
— Tenho, sim — procurei pela instante e puxei um volume. — Aqui está! Já leu este? “Alice no País das Maravilhas”?
— Não. Posso levar?
— É claro que pode! Tome.
No início estávamos receosos em conhecer um ao outro, mas depois ficamos mais à vontade quando ela me pediu que lhe contasse um pouco das minhas histórias. Então eu lhe disse tudo a respeito de Ivan e Isabella, do romance secreto entre eles e das disputas territoriais contra os exércitos mongóis. Disse-lhe resumidamente os capítulos que estava escrevendo e os que ainda tinha em mente. Alicja escutava tudo com atenção, palavra por palavra, saboreando todos os detalhes da trama. Seu rosto se retorcia de empolgação, de vez em quando se mostrava sério. Mas no final estava satisfeita, e aplaudiu.
A partir de então, toda vez que escrevia um novo capítulo, eu o apresentava para ela e Alicja sugeria mudanças. Gostávamos de representar as histórias, aonde eu fazia o papel do cavaleiro e Alicja fingia ser Isabella. Amarrava um lençol às costas e um pedaço de madeira que me valia de espada, e juntos travávamos uma batalha contra inimigos invisíveis dentro do seu quarto.
Os pais de Alicja nunca deixaram de esconder a satisfação que tinham pela nossa amizade. O pai dela chamava-se Bernard, e trabalhava como gerente numa fábrica de calçados. Ficava a maior parte do tempo ausente de casa, e só podia ser encontrado lá aos Domingos. Era um homem alto, tão alto que quase ofuscava a luz por cima de mim. Deixava crescer um bigode espesso no rosto, e gostava de usar sapatos polidos. Quando vinha me cumprimentar, com suas mãos enormes, a impressão que tinha era de que seria esmagado por elas. Por trás do aspecto assustador e da força em sua voz, exibia um sorriso acolhedor e me sentia bem em estar ali como um amigo seu.
A mãe chamava-se Emma. Tinha um sorriso cativante e era encarregada dos afazeres domésticos. Diferente de nós, os Zuraw não tinham uma arrumadeira que auxiliasse na limpeza da casa. Era Emma quem fazia tudo sozinha. Nas ocasiões em que ia visitá-los, me agradava sempre com uma xícara de chá e uma porção de biscoitos e bolinhos que ela mesmo preparava. Ficava a maior parte do tempo cuidando dos afazeres da casa e da educação da filha. Eventualmente minha mãe descia para lhe fazer companhia e passavam o resto da tarde conversando durante as sessões de chá.
Outras vezes era Alicja quem ia até o nosso apartamento, e permanecia a tarde inteira no meu quarto, de onde podia avistar a rua pela varanda e fazer fofocas a respeito dos meninos do bairro. Quando acompanhava a mãe para fazer compras na feira, os comerciantes a presenteavam com frutas, e todo mundo dizia que, quando crescesse, seria uma moça muito bonita e que nunca lhe faltariam pretendentes. De fato, Alicja era bonita à sua maneira: a pele extremamente branca e macia contrastavam com os olhos castanhos, que brilhavam à claridade do dia. Os cabelos escuros e compridos curvavam-se na altura dos ombros, que lhe davam uma aparência de mais idade. Desde jovem, Alicja já chamava a atenção dos garotos da vizinhança. Mas ela nunca se importou com os gracejos — vivia dizendo que eles eram tolos demais.

Prefácio

UMA VEZ CONHECI um velho judeu, enquanto participava de uma convenção de escritores em Gramado. O nome dele, se me recordo bem, era Joshua. Estávamos hospedados no mesmo hotel, onde eu seria homenageado pela Academia Brasileira de Letras pelo meu livro “Vidas Amargas”. Ele se apresentou a mim um dia quando entrava no saguão, e pensei se tratar de mais um fã em busca de um autógrafo ou foto; mas ele queria apenas elogiar meu trabalho e me dizer que, antes de tudo, a história que havia escrito representava para ele um testemunho de sua própria experiência pessoal. Ele havia participado junto a um grupo de refugiados judeus durante a “Marcha da Morte”, assim como o tema tratado no livro, e que fora um dos únicos do seu grupo a escapar com vida durante a longa caminhada. Ficara sabendo então a meu respeito através das informações bibliográficas estampadas na contra-capa, assim como ficou sabendo a respeito das minhas experiências como prisioneiro de guerra em Auschwitz. Vendo-me diante de um antigo conterrâneo, convidei-o para um drinque no bar do hotel para revivermos um pouco mais do passado em nosso país.
Em determinado momento, eu já sabia quase tudo a respeito de Joshua. Sabia que nascera em Wielycka, um pequeno vilarejo próximo da Cracóvia, onde vivera sua infância e adolescência pobre. Ele me falou sobre sua vida simples antes da guerra, sobre suas responsabilidades (começara a trabalhar desde cedo para sustentar a mãe, as duas irmãs e a casa). Via-se na obrigação de garantir a educação das irmãs mais novas e suprir a ausência da figura paterna, porque seu pai havia falecido e lhes deixara como herança um punhado de dívidas. Quando emergiu a guerra, manteve-se vivo abrigando-se clandestinamente na casa de amigos durante alguns anos, mas acabou sendo denunciado aos nazistas e deportado para Birkenau. Condenado aos trabalhos forçados na rotina diária do campo de concentração, Joshua manteve-se vivo até o final da guerra. Não sabia explicar como conseguiu sobreviver ao frio e a fome durante a marcha de retirada conduzida pelos nazistas, pouco antes da Alemanha sucumbir.
Enquanto falávamos sobre nossas vidas, percebi que num determinado momento os olhos deste meu amigo começavam a lacrimejar. Pediu-me desculpas, alegando que ainda carregava consigo a dor pela morte de antigos amigos e parentes. Particularmente, sentia-se arrependido em não estar presente em casa no dia em que suas irmãs foram carregadas à força pelos nazistas, para um destino que até hoje ele desconhece. No dia em que as levaram, Joshua estava trabalhando fora.
O que Joshua sempre quis saber, na verdade, foi a que fim havia levado suas irmãs. Mesmo após o término da guerra, empenhara-se numa busca pessoal, procurado por pistas nos livros de sobreviventes, por nomes nas listas de desaparecidos na Cruz Vermelha ou conhecidos durante as visitas por toda a Polônia, mas não tivera êxito algum. Descobrira que sua mãe falecera em Treblinka, e que seu corpo estava sepultado numa vala comum junto a outros milhares de desconhecidos; apesar de tudo, ele sabia que ela estava morta. Mas o fato de não saber o destino de suas irmãs o incomodara durante anos.
A história de Joshua não é diferente dos depoimentos das famílias que estão em busca dos desaparecidos vítimas da Segunda Guerra Mundial. Com o fim da guerra, surgiram várias entidades com a finalidade de reunir parentes afastados e buscar por desaparecidos de guerra. Durante algum tempo, muitas famílias foram reintegradas e alguns desaparecidos foram encontrados. Essas buscas perduraram por vários anos, à medida que iam se desvanecendo as esperanças dos envolvidos — já não se acreditava mais em finais felizes, mas representava muito saber o que havia acontecido com suas vítimas.
As escrituras do Tanakh dizem que todo ser humano descende de um só indivíduo, e que salvar uma vida equivale a redimir um mundo inteiro. Em tempos de guerra, muitos foram obrigados a deixar de lado as escrituras e, de um modo ou de outro, lutar pela própria sobrevivência. Quando esta condição sub-humana chegou ao seu estágio máximo, muitos homens sentiram-se obrigados a desafiar suas próprias crenças religiosas — e muitos a traíram pela busca da sobrevivência.
Neste terrível cenário, só uma coisa era real: uma garota de olhos curiosos e sorriso meigo que me trouxe a vontade de viver. Eu havia desistido desta vida e me entregara completamente à morte, aguardando sem forças o dia em que me veria sendo carregado por Ela. Nunca mais tive notícias a seu respeito; mas sempre desejei saber o que aconteceu à ela. Estas perguntas têm me atormentado ao longo dos anos, e agora percebo que não posso prosseguir minha vida sem antes saber o que aconteceu exatamente desde a última noite em que nos vimos. Preciso voltar para Varsóvia, refazer aquele caminho novamente. Procurar pistas suas, voltar no tempo, exorcizar os fantasmas do passado. Mesmo depois de muito tempo, eles continuam me assombrando todos os dias, e já não posso mais conviver com eles ao meu lado.